A escrita e eu (ou sobre como me convenci de que não era capaz)

Foto: Conger Design


Aprendi a ler e escrever muito cedo. Quando tinha apenas três anos, surpreendi minha mãe ao gritar, dentro do ônibus, o nome de uma marca de óleo na fachada de uma fábrica. Aos quatro, aprendi a escrever e cheguei à pré-escola quase alfabetizada.

Minha mãe é a grande responsável por eu desenvolver a paixão pela leitura e por contar histórias. Não me lembro de um momento da minha vida em que não houvesse um livro por perto deixado por ela. Assim, ali pelos sete anos, eu já sabia o que queria ser: escritora. E querer não é poder.

Eu tinha oito anos e estava na terceira série. Lemos um trecho de um livro de um autor famoso da literatura infantil, e a professora nos deu a tarefa de escrever uma composição inspirada na história lida.

Fiquei empolgada, e não paravam de chegar ideias à minha cabeça. Já não lembro mais os detalhes, mas, em resumo, a minha personagem (que era a personagem do tal autor) vivia uma aventura que envolvia uma floresta, uma caverna, um monstro e umas aranhas muito loucas. Minha trama acabou ocupando três páginas.

Uns dias depois, a professora chamou minha mãe na escola. Eu tinha que parar de escrever aqueles textos grandes porque não era adequado para a terceira série nem para a minha idade. Disse que eu teria problemas no vestibular, porque havia limite de linhas, e outras coisas que não sei. Pediu que minha mãe me incentivasse menos, me desse menos livros.

Eu, que não fazia a menor ideia do que era vestibular, do alto dos meus oito anos, entendi que a história das aranhas psicodélicas só era boa na minha cabeça. Fiquei com vergonha por ter pensado que podia ser escritora. E o resto não lembro.

Não era só o meu sonho de ser escritora que estava sendo destruído ali. Crianças encontram suas próprias maneiras de lidar com realidades indesejadas. Muitos anos mais tarde, consegui elaborar sobre isso. Aquele não era o único trauma, e eu estava criando um mundo sem dor.

Continuei escrevendo, embora menos, mas guardava pra mim. Na adolescência, criei o hábito dos diários. Acho que lá no fundo ainda tinha uma escritora, mas eu sabia que ela não podia sair de lá.

Um dia, tudo ficou escuro. O transtorno bipolar me acertou na cara e me derrubou. Minha escrita se tornou sombria e confusa.

Acumulei cada vez mais cadernos, criei mais de três blogs, comecei uma meia dúzia de livros. E desgraçadamente descobri o que era vestibular e, na fila de inscrição, fiz umas das escolhas mais desastrosas da minha vida: virei jornalista. Passei a escrever para sobreviver.

Quando as crises de mania passavam, era um desgaste enorme sair deletando os blogs e as coisas confusas que eu escrevia em madrugadas seguidas sem dormir. Eu achava que estava arrasando, mas, quando a mania passa, tudo que sobra é um amontoado de ideias confusas e um oceano de vergonha. E vinha a depressão e os escritos sombrios.

Minha vida não é só uma crise emendada na outra. Tenho momentos de remissão, que se tornaram maiores que os de crise. O que tenho não tem cura, mas posso dizer que aprendi a controlar a doença. Isso porque nunca fui negacionista quanto ao tratamento: remédio e terapia para o resto da vida.

Nesses momentos de melhora, aprendi a identificar e evitar os gatilhos. Os principais são a culpa e a vergonha. Então comecei a evitar tudo que pudesse me levar a esses dois becos sem saída.

Não tenho ilusão de que agora vou ter, enfim, minha carreira literária de sucesso. Sou mulher, de meia idade, com uma doença mental, completamente desconhecida, em uma sociedade que não acolhe quem é diferente. Não estou me vitimizando. Não me sinto uma vítima, embora, do ponto de vista objetivo, eu seja. Sou realista. Quem decidir me acompanhar verá o quanto sei ser desagradável.

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Este trabalho é fruto de mais de trinta anos de escritos. São cadernos, diários, agendas, papéis soltos, guardanapos, blocos, docs e, de uns dez anos para cá, também áudios e vídeos. Está sendo bem trabalhoso. Quero compartilhar com você essa experiência.

Olhando para tudo isso agora, consigo fazer uma análise lúcida do que foi a minha vida. É muito importante para mim elaborar por meio da escrita. O efeito colateral deste livro é ser um ponto de apoio para outras pessoas como eu. Isso justifica a sua existência.

Tenho consciência de que estou em um momento de estabilidade, mais autoconsciente do que em qualquer outro momento. Mas é impossível não pensar, às vezes, que posso estar maníaca e que daqui a pouco vou achar tudo horrível, morrer de vergonha e me trancar para sempre.

Do nada, surgem uns pensamentos intrusos: e se for tudo uma crise de mania e eu não sei que é uma crise de mania? E se eu estou achando que estou fazendo uma coisa legal, mas é só meu cérebro me enganando? Como eu vou lidar com a vergonha depois? Como eu vou encarar as pessoas? E se tudo for só mais uma história sobre aranhas psicodélicas?

Escrever sobre isso e sobre todo o processo ao longo da produção pode ser uma boa balança.

Bem-vindas e bem-vindos à minha cabeça.