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Foto: Conger Design |
Minha mãe é a grande responsável por eu desenvolver a paixão pela leitura e por contar histórias. Não me lembro de um momento da minha vida em que não houvesse um livro por perto deixado por ela. Assim, ali pelos sete anos, eu já sabia o que queria ser: escritora. E querer não é poder.
Eu tinha oito anos e estava na terceira série. Lemos um
trecho de um livro de um autor famoso da literatura infantil, e a professora
nos deu a tarefa de escrever uma composição inspirada na história lida.
Fiquei empolgada, e não paravam de chegar ideias à minha cabeça. Já não lembro mais os detalhes, mas, em resumo, a minha personagem
(que era a personagem do tal autor) vivia uma aventura que envolvia uma
floresta, uma caverna, um monstro e umas aranhas muito loucas. Minha trama acabou
ocupando três páginas.
Uns dias depois, a professora chamou minha mãe na
escola. Eu tinha que parar de escrever aqueles textos grandes porque não era
adequado para a terceira série nem para a minha idade. Disse que eu teria
problemas no vestibular, porque havia limite de linhas, e outras coisas que não
sei. Pediu que minha mãe me incentivasse menos, me desse menos livros.
Eu, que não fazia a menor ideia do que era vestibular, do alto dos meus oito anos, entendi que a história das aranhas psicodélicas
só era boa na minha cabeça. Fiquei com vergonha por ter pensado que podia ser
escritora. E o resto não lembro.
Não era só o meu sonho de ser escritora que estava
sendo destruído ali. Crianças encontram suas próprias maneiras de lidar com
realidades indesejadas. Muitos anos mais tarde, consegui elaborar sobre isso. Aquele não era o único trauma, e eu estava criando um
mundo sem dor.
Continuei escrevendo, embora menos, mas guardava
pra mim. Na adolescência, criei o hábito dos diários. Acho que lá no fundo
ainda tinha uma escritora, mas eu sabia que ela não podia sair de lá.
Um dia, tudo ficou escuro. O transtorno bipolar me
acertou na cara e me derrubou. Minha escrita se tornou sombria e confusa.
Acumulei cada vez mais cadernos, criei mais de três
blogs, comecei uma meia dúzia de livros. E desgraçadamente descobri o que era
vestibular e, na fila de inscrição, fiz umas das escolhas mais desastrosas da
minha vida: virei jornalista. Passei a escrever para sobreviver.
Quando as crises de mania passavam, era um desgaste
enorme sair deletando os blogs e as coisas confusas que eu escrevia em
madrugadas seguidas sem dormir. Eu achava que estava arrasando, mas, quando a
mania passa, tudo que sobra é um amontoado de ideias confusas e um oceano de
vergonha. E vinha a depressão e os escritos sombrios.
Minha vida não é só uma crise emendada na outra. Tenho momentos de remissão, que se tornaram maiores que os de crise. O que tenho não tem cura, mas posso dizer que aprendi a controlar a
doença. Isso porque nunca fui negacionista quanto ao tratamento: remédio e
terapia para o resto da vida.
Nesses momentos de melhora, aprendi a identificar e
evitar os gatilhos. Os principais são a culpa e a vergonha. Então comecei a
evitar tudo que pudesse me levar a esses dois becos sem saída.
Não tenho ilusão de que agora vou ter, enfim, minha carreira
literária de sucesso. Sou mulher, de meia idade, com uma doença mental, completamente
desconhecida, em uma sociedade que não acolhe quem é diferente. Não estou me
vitimizando. Não me sinto uma vítima, embora, do ponto de vista objetivo, eu seja.
Sou realista. Quem decidir me acompanhar verá o quanto sei ser desagradável.
* * * * *
Este trabalho é fruto de mais de trinta anos de
escritos. São cadernos, diários, agendas, papéis soltos, guardanapos, blocos, docs
e, de uns dez anos para cá, também áudios e vídeos. Está sendo bem trabalhoso. Quero compartilhar com você essa experiência.
Olhando para tudo isso agora, consigo fazer uma
análise lúcida do que foi a minha vida. É muito importante para mim elaborar por meio da escrita. O efeito colateral deste livro é ser um ponto de
apoio para outras pessoas como eu. Isso justifica a sua existência.
Tenho consciência de que estou em um momento de
estabilidade, mais autoconsciente do que em qualquer outro momento. Mas é
impossível não pensar, às vezes, que posso estar maníaca e que daqui a pouco
vou achar tudo horrível, morrer de vergonha e me trancar para sempre.
Do nada, surgem uns pensamentos intrusos: e se for
tudo uma crise de mania e eu não sei que é uma crise de mania? E se eu estou
achando que estou fazendo uma coisa legal, mas é só meu cérebro me enganando? Como
eu vou lidar com a vergonha depois? Como eu vou encarar as pessoas? E se tudo for só mais uma história sobre aranhas psicodélicas?
Escrever
sobre isso e sobre todo o processo ao longo da produção pode ser uma boa balança.
Bem-vindas e bem-vindos à minha cabeça.