![]() |
Fotot: Ron Lach |
Troquei minha máquina de escrever. Quer dizer, comprei uma nova. Há anos me fazia falta uma máquina de escrever.
Foi o que Don Draper disse enquanto escrevia em seu diário com a caneta (acho que ele pensou na verdade) que me fez tomar a decisão. Quem é Don Draper? É o protagonista escroto da série Mad Men. No entanto, um gênio da comunicação. Bom, ele disse que escrevia a mão porque quando se sentava em frente à máquina era como se estivesse no trabalho. A série se passa nos anos 1960, não havia microcomputador.
É isso. Transformei uma paixão em trabalho. No momento em que decidi ser jornalista, sem saber eu estava decidindo também a minha relação com a escrita. E de uma decisão equivocada não podia sair nada bom.
Quando vou escrever, fecho o arquivo no qual estou trabalhando e abro outro no mesmo aplicativo. Nem sequer levanto da cadeira. Às vezes vou ao banheiro. Então fico algumas horas ali no lugar onde trabalhei o dia todo, vendo os mesmos ícones, as mesmas configurações. Ao final, tenho algumas linhas confusas e um fardo pesado de culpa e autopunição.
Quando vi a cena de Mad Men, lembrei da minha máquina de escrever. Sim, uma máquina mesmo, de verdade, com fita de nylon, que faz tec tec tec, e a tecla del é um vidro de corretivo. Ganhei quando tinha treze anos, do chefe da minha mãe, que logo seria o meu chefe também. Uma Olivetti Lettera 32 verde. Escrevia em duas cores e era fácil de carregar. Tinha uma bolsa de couro tiracolo. Era mais ou menos como carregar um notebook. Com um pacote de cinco quilos de arroz junto.
Como era fácil escrever com ela. Não do ponto de vista prático, porque era pesada, as teclas eram duras e, se você errasse, às vezes tinha que começar tudo de novo. Mas eu sentava na frente dela, e o texto saía como se nunca houvesse estado na minha cabeça.
Ainda funciona. Mas não é uma opção. Não tenho mais tendões para ela e não faz nenhum sentido. Por mim, só o cursor e a tecla del já justificam a aposentadoria da Leterra 32. (Estou me sentindo culpada, fui cruel com a minha companheira de tantas viagens. Imaginei ela jogando na minha cara: “Pelo menos comigo você escrevia”.)
Mas eu quero muito resolver meus problemas criativos. Não posso mais ficar tomando clonazepam pra desacelerar o pensamento, inclusive porque eu acabo dormindo.
Sem grana para um computador novo fodástico como eu queria, acabei comprando um notebook absurdamente barato, sem HD nem SSD, com míseros 4G de RAM e 64G de memória na nuvem oferecidos pela fabricante, possivelmente menos que a memória do seu celular.
Estava um pouco frustrada. Aí ele chegou. Que acerto! Quase achei bom não ter o dinheiro para comprar o computador fodástico (mentira, continuo achando horrível). É minha nova máquina de escrever. Pesa pouco mais de um quilo e tem um centímetro e meio de espessura. Posso carregar pra onde eu quiser e escrever em qualquer lugar.
Estou me acostumando a trabalhar direto na nuvem, e isso é bom. Estou conseguindo desvincular também o ambiente digital do trabalho. Parece mesmo uma máquina de escrever.
Não é a resposta para todos os meus bloqueios. Não faz com que desapareçam os pensamentos acelerados nem os pensamentos intrusivos. Não apaga o fato de eu ter uma doença mental que interfere na minha cognição. Mas eu não sou o transtorno bipolar e preciso pelo menos tentar consertar isso. Meio tarde? Sim, mas, por outro lado, não posso me cobrar como se fosse uma pessoa normal.
Escrevi muito na minha Lettera 32. Isso foi há muitos anos. Vamos ver o que acontece agora.
(Vai se chamar Lettera 64. É vermelho.)
0 Comentários