Foto: Sonata de inverno, série de televisão sul-coreana de 2002 [Divulgação]
Você já parou para pensar se o que você está assistindo é realmente um dorama?
Nos últimos anos, a cultura asiática – em primeiro lugar a sul-coreana – tomou um grande fôlego no Ocidente. A Hallyu (um neologismo formado pelas palavras han = coreana; ryu = onda), que começou como uma onda cultural nos anos 1990, tem dominado o mundo ocidental de forma crescente. No Brasil, ela ganhou força nos últimos anos, principalmente com o K-pop, mas também com as produções televisivas. As séries de drama, por exemplo, têm conquistado uma audiência fiel e cada vez mais fazem parte do cotidiano de muitas pessoas. Hoje, a onda sul-coreana não envolve só música, mas também moda, costumes, gastronomia, cinema e, é óbvio, nossas amadas séries.
Por meio dos streamings, as produções televisivas sul-coreanas têm chegado aos montes às nossas TVs, celulares e computadores. Estamos falando do que ficou conhecido aqui como dorama. Esse termo é usado com frequência para se referir a séries de televisão sul-coreanas, geralmente no formato de telenovelas ou dramas televisivos produzidos na Coreia do Sul.
Mas você sabia que os sul-coreanos não são muito fãs dessa expressão? Que saber por quê?
Uma palavra japonesa
Antes de tudo, dorama não é uma palavra coreana, mas sim uma adaptação da
palavra japonesa dorama, que, por sua vez, é um anglicismo. Isso tem uma
importância grande, porque, em 1910, o Japão iniciou a ocupação na península da
Coreia, dando ao imperador japonês o controle total da soberania
coreana (na época, a Coreia era um país único). A situação durou até 1945, com
o fim da Segunda Guerra Mundial. A queda de Hiroshima e Nagasaki, com o lançamento
das bombas atômicas, colocou um fim na ocupação.
O que se sabe é que foi um período de muita opressão, incluindo, entre outras
coisas, escravização sexual de mulheres, repressão violenta a qualquer ato de
resistência e a imposição do idioma japonês como língua oficial do país. E, ao
contrário de nós, que passamos o maior pano para os colonizadores ibéricos, os
coreanos não esqueceram as barbaridades cometidas contra seu povo. Por isso,
ver sua fantástica produção audiovisual sendo demarcada com um termo do seu
opressor não deve ser lá muito gratificante.
Tem mais.
Alguns fãs e especialistas em cultura sul-coreana argumentam que o termo é uma
adaptação ocidental que simplifica ou estereotipa a diversidade dos dramas sul-coreanos.
A Coreia do Sul produz uma variedade de conteúdos que vai muito além do K-drama,
inclusive, englobando dramas históricos, romances, comédias, ficção científica,
thrillers (meus favoritos) e outros gêneros, em novelas, séries e filmes.
Chamar tudo simplesmente de “dorama” é uma generalização que não reflete a
riqueza e a diversidade da produção televisiva sul-coreana.
Assim, alguns percebem o termo dorama como uma forma de estigmatização
cultural, associando os dramas coreanos a um rótulo estrangeiro que pode
carregar estereótipos ou conotações específicas. Isso fica evidente, por
exemplo, quando surgem cobranças e críticas baseadas em valores ocidentais
antes de se tentar compreender o desenvolvimento daquela cultura, que, vale
lembrar, no capitalismo, é desigual e combinado.
Tensão entre Coreia do Sul e Brasil
A despeito de tudo isso, em outubro de 2023, a Academia Brasileira de
Letras (ABL) criou o verbete dorama no Vocabulário Ortográfico da Língua
Portuguesa (Volp). Segundo a ABL, dorama é uma “obra audiovisual
de ficção em formato de série, produzida no leste e sudeste da Ásia, de gêneros
e temas diversos em geral, com elenco local e no idioma do país de origem”.
De forma contraditória, a própria ABL afirma em seu site: “Os doramas foram
criados no Japão na década de 1950 e se expandiram para outros países
asiáticos, adquirindo características e marcas culturais próprias de cada
território. Para identificar o país de origem, também são usadas denominações
específicas, como, por exemplo, os estrangeirismos da língua inglesa J-drama,
para os doramas japoneses, K-drama para os coreanos, C-drama para os chineses”.
A inclusão polêmica gerou discussões dentro e fora do Brasil. A comunidade
sul-coreana daqui não curtiu nem um pouco. A Associação Brasileira dos Coreanos
expressou descontentamento com a inclusão do termo dorama no Volp, considerando
a decisão preconceituosa. Eles argumentam que o uso do termo japonês para
generalizar produções de diferentes países asiáticos apaga as particularidades
culturais de cada nação, reforçando estereótipos e estruturas de raízes
imperialistas.
Em carta endereçada à ABL, a entidade afirmou: “A Associação considera
preconceituosa a decisão de generalizar as produções do leste-asiático. Não é
certo generalizar expressões culturais. Cada produção tem suas características,
peculiaridades e um público específico. Generalizar é confundir as peculiaridades.
É como falar que toda comida nordestina é comida baiana”.
“Mas um coreano disse...”
É importante observar que nem todos os sul-coreanos têm a mesma perspectiva
sobre o assunto. O termo “dorama” é amplamente usado fora da Coreia do Sul e é
aceito em muitos contextos. Fãs internacionais de dramas coreanos usam o termo
como uma forma de se referir carinhosamente a essas produções televisivas. A
aceitação ou rejeição do termo pode variar de pessoa para pessoa.
Particularmente, como profissional do texto, não seguirei o Volp desta vez. E você?
Você conhecia esta polêmica? Será que estamos diante de uma discussão do tipo (norte-)americano
versus estadunidense? Se quiser saber mais sobre isso, deixe um
comentário no blog ou nas minhas redes sociais.
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