A escrita não é uma prisão




Foto: RDNE


Escrevi um texto recentemente para o Queria SerPsicóloga Mas Sou Paciente sobre o livro Bem-vindos à livraria Hyunam-dong, da escritora sul-coreana Hwang Bo-reum. O livro aborda, de maneira incrível, o propósito da vida, por meio de personagens cheios de conflitos internos e questões sociais. Você pode ler meu artigo aqui.


Existem dois aspectos do livro sobre os quais não dissertei naquele texto. Um deles porque achei que poderia tirar o foco da minha reflexão se o aprofundasse e outro porque está fora da narrativa. O primeiro é que, para apaixonados por livros como eu, este é praticamente um manual sobre como administrar uma livraria. Terminei a leitura desejando abrir uma.

O segundo ponto é o que mais me interessa aqui. No final do livro, há uma seção intitulada “Palavras da autora”, na qual Hwang Bo-reum fala sobre o processo de criação da obra e de sua própria trajetória. Eu reproduziria na íntegra estas pouco mais de duas páginas, mas não tenho certeza se posso, por causa dos direitos autorais.

Em resumo, Bo-reum tinha se tornado escritora havia poucos meses, preocupada em como se tornar uma boa ensaísta. Um dia, teve um pensamento: “E se eu tentasse escrever um romance?” E dias depois começou a gestar-se Bem-vindos à livraria Hyunam-dong.

“Eu só tinha três coisas em mente: a primeira sílaba da livraria tinha que ser ‘Hyu’, a dona da livraria se chamaria Yeong-ju e o barista, Min-jun. Comecei a escrever e o resto fui decidindo enquanto avançava”, conta Bo-reum.

É loucura, mas comecei a chorar quando li isso. Para você entender, preciso contar uma parte da minha trajetória. Faz dois anos que voltei a escrever pensando em publicar depois de mais de duas décadas. Tenho participado de antologias e publicado em blogs, mas meu projeto central é um romance, que comecei a escrever também há dois anos.

Ao ver muitos escritores jovens fazendo sucesso, percebi – e não estava errada de maneira nenhuma – que estou tremendamente em desvantagem, não importa quão boa eu possa ser. Eu não consigo fazer isso sozinha. Então comecei a fazer cursos de escrita. Comprei tantos, que alguns não fiz até hoje. Um em particular prometeu ser a minha salvação. Coloquei meu romance em stand by e fui aprender o segredo do livro perfeito – e a como ter sucesso na carreira de escritora, uma carreira que eu nem mesmo havia construído.

Não consegui terminar o curso. Fiquei deprimida, bloqueada e com a certeza de que não posso ser escritora. São muitas fórmulas que não consigo seguir, porque eu não tenho uma história finalizada na cabeça. Por exemplo, como eu poderia, antes de escrever, saber quais seriam todos os capítulos? Ou como construir uma persona nos moldes do manual, se minha personagem é complexa e muda de humor o tempo todo?

Acreditem, existe um e-book para cada etapa, com esquemas e questionários que devem ser respondidos como pré-requisitos para se construir uma boa história. Ao mesmo tempo, a ideia de que escrever um livro é o mesmo que preencher fórmulas e receitas me assusta. Logo, se não sou capaz de montar um esquema, não sou capaz de ser escritora. Foi o que pensei.

A gota d’água foi o marketing. A certa altura, comecei a pensar: se para ser uma escritora publicada eu tiver que passar este tempo todo nas redes sociais, quando vou escrever? E a mentora do curso não está errada, pelo menos não na lógica de mercado. Certa vez, participei de um bate-papo com o CEO de uma grande editora que disse explicitamente que, quando recebia uma proposta de livro (book proposal), visitava as redes sociais da pessoa que enviara antes de a ler. A pessoa deveria ter um número razoável de seguidores, mas, sobretudo, ter engajamento. E como se consegue engajamento? Sendo frequente nas redes.

Eu arrisco dizer que uns 90% dos escritores brasileiros, dentre os quais me incluo, não vivem de escrita. Precisamos trabalhar oito ou mais horas por dia, dormir, comer, tomar banho, fazer o trabalho doméstico e, de preferência mas nem sempre possível, fazer atividade física. Quanto tempo devo passar nas redes? Vai sobrar tempo para escrever? Isso me matou – não sem antes me deixar puta. E eu que já fui socialmedia sei o quão rasa pode ser esta atividade, o quanto de empenho colocamos para resultados quase sempre aquém do exigido. Mas isso é outra história.

Então desisti.

Continuei escrevendo pra mim, até publiquei alguns contos. Mas o romance, que era meu grande projeto, ficou quase parado. Digo “quase” porque aproveitei algumas oportunidades para fazer pesquisa, mas escrever, que é bom, nada.

Não nego a importância da técnica, muito pelo contrário. Tento sempre melhorar a minha escrita. Também não vou dizer que o tal curso não presta. Ele é feito por uma das melhores profissionais do país. Tampouco posso ignorar minhas limitações de saúde mental. Só acho que não é pra mim. Não é para todos.

As últimas semanas têm sido de retorno. Tudo que sei é que meu romance vai se chamar Eu não queria incomodar vocês (esta era a única coisa que eu não abria mão naquele monte de esquema) e que uma mulher vai desaparecer. Ah, e é uma obra de autoficção (porque não quero incomodar ninguém bdtssss).

Foi assim que decidi dar o start. Vou aproveitar boa parte do que já escrevi, mas vou seguir outra rota, a qual ainda não defini. Vai ser traçada no desenrolar do trabalho. Se me sentir presa, vou reescrever. Quero me divertir, fazer descobertas. Chega uma hora em que temos de decidir se queremos escrever livros ou vender livros.

Hwang Bo-reum me reconectou com a minha escrita. “O tempo que passei escrevendo o romance foi incrivelmente divertido”, ela disse. É assim que deve ser, e eu havia esquecido esta lição. “Pode não acontecer todos os dias nem com frequência, mas há momentos em que simplesmente pensamos ‘isso é o bastante’.”


Se você quiser saber mais sobre o livro, leia minha crítica no QSPMSP.

Bem-vindos à Livraria Hyunam-Dong
Autora: Hwang Bo-reum
Tradução: Jae-hyun Woo
Nº de páginas: 271
Editora Intrínseca, 2023


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1 Comentários

  1. Escrever um texto, um conto ou um livro, não é tarefa para todos, mas sei que você é capaz é pode ir muito além.
    E sim, a inspiração vem com o desenrolar da história.
    Tô aguardando ansiosamente a conclusão deste livro, que sei, será muito interessante.
    Que daqui até a sua finalização você possa se divertir, sem cobranças de que saia perfeito!
    Te amo minha escritora preferida!

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