Foto: Brett Sayles (@dpopbes)
Querido André,
Está sendo uma madrugada não muito fácil. São vinte para as quatro da manhã, e estou estudando na cozinha. Um pensamento intrusivo, embora curto, está me perturbando. Quando isso acontece, costumo escrever.
Há alguns meses decidimos encarar um tipo de relação que acabou evoluindo (rápido, para os meus parâmetros). De repente, me deparei com algo muito diferente do que eu vinha vivendo até então: mais maduro, mais honesto, mais bonito.
Durante este tempo, você se dedicou a buscar uma contradição. Talvez sua busca tenha se encerrado. Talvez eu a tenha encontrado antes de você. Essa tal realidade…
Somos muito diferentes. Isso não é ruim. Por causa dessas diferenças, nos complementamos. Aprendemos coisas um com o outro. É verdade que às vezes essas diferenças limitam espaços e laços. Mas não seria ótimo se todos os casais conseguissem perceber seus limites e escolher respeitá-los?
A realidade impôs oportunidades e papéis diferentes a cada um de nós.
Quero muito – muito mesmo – que você receba a sua promoção. Fiquei muito feliz quando soube. Não quero nem pensar que posso atrapalhar você, nem por um instante. Jamais vou disputar seu tempo e não quero alterar sua rotina. Você faria o mesmo por mim, tenho certeza. É por isso que somos ótimos juntos.
Você me fez gostar de BoJack Horseman, eu te convenci a jogar Atari.
De minha parte, não posso e não quero abrir mão de mim. Tenho plena consciência de nossos papéis no mudo, da diferença entre eles. Sei que também sou importante, de um jeito diferente.
Você é uma das melhores pessoas que conheci.
André terminou de ler, levantou os olhos e perguntou:
— Está faltando uma página?
— Não – ela respondeu com a voz fraca e um pouco melancólica.
Letícia levantou os olhos, apoiou o queixo sobre as mãos cruzadas e olhou pela janela ao seu lado. Do café onde estavam via a praça onde um casal passeava com dois cachorros, um velhinho olhava para qualquer coisa sentado em um banco, alguns adolescentes skatistas sem skates fumavam maconha. Ela suspirou, como quem toma fôlego, e acrescentou mais um clichê:
— Não é você, sou eu.
Por alguns segundos, os dois ficaram se encarando como duas crianças jogando “quem rir primeiro perde”.
— Ok, acho que entendi o que está acontecendo. Mas você vai ter que falar, Letícia, porque não está fazendo sentido.
— Eu quero ficar sozinha.
Com a mão trêmula, Letícia puxou um guardanapo de papel e começou a dobrar infinitamente como se fosse começar um origami.
— É difícil de explicar. Eu só acho que não quero ter um relacionamento. Nem agora nem nunca talvez. Eu só gosto de ser sozinha.
(continua)
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