As malas [parte 1]


Foto: Timur Weber

Eram três, uma grande e duas um pouco menores. Lá dentro, calças, camisas, blusas, sapatos e vestidos contorcidos brigavam por espaço. Não coube tudo, mas ela podia pegar o resto depois. Estava decidida. Na verdade, havia bebido, e sua mente estava confusa. Simplesmente abriu o guarda-roupa e começou a tirar tudo de dentro. Só parou quando encheu as três malas.


Parecia um pesadelo. Sentiu que estava dentro do filme Cidade dos Sonhos, de David Linch. Naquele momento só queria ir embora. Era madrugada e estava isolada num lugar que não era o seu. Nunca foi. Aceitou ir para lá sob pressão. É evidente que a única culpada por isso era ela e agora tinha a chance de consertar.


Ela lembrava que durante a briga ele estava perto e falava coisas estranhas e confusas, tanto quando a cabeça dela naquele momento. A única cena muito nítida que ficou guardada foi quando ele terminou com ela. As palavras entravam e saíam de sua mente como se não fossem verdadeiras. Só lembra que se sentiu muito triste, confusa, humilhada até e, de certa forma, leve apesar de pesada.


Quando amanhecesse, veria o que fazer. Ligaria para uma amiga, iria para um hotel. Mas ali não ficaria mais. Ele disse “não vai, amanhã a gente vê”, ela acha que foi isso que ele disse. Não sabia, mas ela não queria ficar ali. Aquele lugar a destruíra. Tentou dormir para esperar o dia amanhecer.


Tentando acordar, ainda lutava para entender que aquilo tudo era verdade, que havia acontecido mesmo. Ainda não totalmente desperta, levou um susto. Ele estava deitado ao seu lado no sofá apertado do quarto da bagunça – ela se recusara a dormir na própria cama, a cama que era dela e de mais ninguém.


“Vamos conversar… tentar de novo… mais uma vez”. Ela não estava mais sob efeito do álcool, mas também não lembra se foi exatamente isso ou se isso foi uma interpretação sua.


Ficou. Não era orgulhosa ou não queria ser. Pelo menos naquele momento. Conversaram, não lembra o que, e ela ficou. Mais uma vez. A iminência da perda acabou sendo um choque mais forte.


Mesmo não lembrando o que foi dito, alguma coisa despertou dentro dela. Foi como se tivesse passado horas diante de um espelho, e a imagem era feia, muito feia, por dentro e por fora. A outra, que talvez ele amasse mais do que a ela, era o seu próprio reflexo no espelho. Bonita, inteligente, alegre, simpática. Era aquilo que um dia ela havia sido.


Pensou nas coisas que diziam um para o outro antigamente e o viu com nitidez dizendo as mesmas coisas para ela. As coisas que eram só suas, que eles tinham criado. Não sentia ciúmes, apenas a admirava. Como um dia se admirava…


Como chegara àquele ponto? Seus oitenta quilos que preenchiam aquele um metro e sessenta, sua pele maltratada, seu cabelo sem corte. Tudo aquilo a lembrava que um dia, num passado nem tão distante, mas não perto o suficiente, ela existiu.


Quem era aquela mulher no espelho? Não importava o que ele tinha feito, se tinha um caso, se amava a outra e não mais a ela… Não importava o que aconteceria dali por diante entre eles. Ela estava viva. Dentro dela, um bicho se movia. Ele querendo ficar, ela querendo expulsá-lo. O bicho a corroeu durante anos, não sabe ao certo quantos. Três? Quatro? E causou grandes estragos, comeu boa parte de suas entranhas. Mas ele preferia a mente.


Com um único golpe, ela o matou. Ele se dilacerou e teria de ser expulso aos pedaços. Foi o que ela fez. O cabelo cortado levou uma parte dele, a maquiagem levou só um pedacinho. Mas o que o jogou para fora de vez foi quando arrancou o cérebro do bicho e viu que ele estava deteriorado, um cadáver.


Podia ser alegre de novo, podia se divertir, podia ser bonita. Podia voltar a ser inteligente, ler, escrever. O melhor de tudo é que não dependia de ninguém para isso. Um mês depois, quase dez quilos a menos, viu que tinham ido embora os últimos vestígios do bicho.


Ele? Ainda estavam lá os dois. As coisas melhoraram entre eles. Não sabia quanto tempo aquilo duraria. Ela não precisava tomar uma decisão no agora. Podia refletir, se reconhecer melhor.


As malas? Continuavam lá, do mesmo jeito. Quando chegasse a hora de desfazê-las, ela saberia. Ali ou em qualquer outro lugar.


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