As garras da privatização e a ameaça à memória coletiva


Placas arrancadas, túmulos quebrados, lixo espalhado e acumulado nas ruas. O que encontrei foi um cenário de abandono e destruição ao visitar ontem, 22 de março, o Cemitério da Consolação, em São Paulo, aonde eu não ia desde 2023.

Levei comigo uma lista de seis nomes cujos túmulos eu deveria fotografar para o Find a Grave. Depois de algumas voltas e uma ida ao banheiro, sentei, respirei e decidi mudar o foco. As fotos que você vai ver não mostram os túmulos daqueles cujos memoriais eu deveria ilustrar, mas um cenário caótico de destruição e descaso.

Antes, até tentei encontrá-los, mas logo esta acabou se revelando uma tarefa inglória. Na administração, não havia ninguém para ajudar com a localização, mostrar o registro, coisas normais em um cemitério. Andar de modo aleatório também acabou sendo meio inútil, pois metade dos túmulos estava sem placa de identificação.

Mato crescendo alto nos túmulos e ao redor deles, jazigos quebrados, ruas esburacadas e cheias de lixo: isso é o que você vai encontrar – e um banheiro bem ruim também. Para piorar, um temporal ocorrido há dez dias derrubou árvores e provocou alguns estragos, e até hoje não foi feita uma limpeza. Um dos portões está fechado, porque tem um galho de árvore caído da sua frente. Dez dias!

Conversando com duas mulheres que estavam visitando o jazigo da sua família, comecei a entender a situação. Elas, que vou chamar de Ana e Teresa (nomes fictícios), estavam indignadas: “Quando a prefeitura administrava, não era assim”, disse Teresa. “Roubaram um vaso [do jazigo delas], e, quando fomos reclamar, mandaram fazer BO, que não podem fazer nada porque é tombado”, contou Ana.

Acontece que, em março de 2023, a gestão de vários cemitérios públicos de São Paulo foi transferida para empresas privadas. Até então, a administração era feita pela Prefeitura, já comandada, na época, por Ricardo Nunes. A promessa era modernizar e melhorar os serviços. O que ocorreu foi exatamente o oposto: menos funcionários, menos estrutura, mais descaso.

O Cemitério da Consolação ficou nas mãos da Consolare, uma empresa concessionária de serviços funerários que também administra outros cemitérios e agências funerárias em São Paulo. Resultado: serviços mais caros e piores, porque a essência da privatização é lucrar, e preservar o patrimônio e respeitar a memória dos que ali estão não dá lucro.

[Continua depois das fotos.]



Importância histórica e cultural do Cemitério da Consolação
Fundado há mais de 160 anos, o Cemitério da Consolação é considerado um museu a céu aberto, abrigando obras de artistas renomados como Victor Brecheret, Nicolina Vaz e Amedeu Zani. Além disso, é o local de descanso de figuras ilustres da história brasileira, como Tarsila do Amaral, Luís Gama, Mario de Andrade e Oswald Andrade. Sua preservação é essencial para manter viva a memória cultural e artística de São Paulo.

Nos últimos anos, especialmente após a mudança na gestão, aumentaram significativamente os casos de furtos e vandalismo. Obras de arte de grande valor, como estátuas de bronze e relevos, foram subtraídas, deixando túmulos históricos desfigurados. O pior é que não há um registro centralizado sobre este patrimônio, ou seja, o descontrole é total.

O argumento de não fazer nada por causa do tombamento é o mais absurdo que já ouvi. A lógica é exatamente oposta. Por ser tombado, a empresa tem o dever de garantir a preservação e a segurança dos jazigos. A empresa deveria inclusive responder criminalmente segundo a própria justiça burguesa, pois o crime de depredação do patrimônio está tipificado no Código Penal – isso só torna a situação muito mais absurda.

Se há leis para proteger o patrimônio, por que não estão sendo aplicadas? A empresa que deveria preservar agora é cúmplice da destruição. Essa situação só deixa evidente o caráter de classe das leis e o quanto elas são seletivas.

Os interesses da empresa não são os da população
A indústria da morte é muito lucrativa no Brasil. A prova disso é que não havia funcionários para auxiliar os visitantes, mas havia vendedores de serviços elegantemente vestidos apresentando catálogos e convencendo potenciais clientes. Isso acontece apesar das rígidas normas que restringem o uso do cemitério.

Ana e Teresa também comentaram que estão pagando valores de taxas mais altos, o que em tese é proibido às administradoras privadas. Nem mesmo o edital de uma concessão extremamente nociva é respeitado.

Em novembro do ano passado, o diretor-presidente da Consolare, Maurício Costa, foi ouvido na Câmara de Vereadores após inúmeras denúncias. Segundo reportagem da Agência Brasil, “depois de 21 notificações dos fiscais da prefeitura, a empresa pagou apenas uma das multas […] referente a um caso de março do ano passado, em que a família de um natimorto passou dois dias tentando o sepultamento gratuito”.

A maioria das reclamações estão relacionadas a valores e manutenção. Maurício Costa disse que o estado dos cemitérios está “bom, caminhando para ótimo”. Bem… veja as fotos e tire suas próprias conclusões.

A transição para a gestão privada, realizada sob o pretexto de melhorar a administração e a conservação, resultou no oposto disso. A falta de investimentos em segurança e manutenção é o principal motivo para se ter chegado ao estado atual de abandono e deterioração.

Consequências
O descaso com o cemitério não afeta apenas a integridade física do espaço, mas também representa um desrespeito à memória coletiva. Cada túmulo vandalizado ou obra de arte roubada significa uma perda irreparável para a história e a cultura da cidade.

É fundamental que haja uma mobilização para reverter esse cenário. E, na minha opinião, isso só será possível com o fim da privatização e o retorno da gestão para a Prefeitura e os órgãos do patrimônio responsáveis, com uma forte fiscalização da comunidade.

A preservação do Cemitério da Consolação não é apenas uma questão de respeito aos que ali estão sepultados, mas também um compromisso com a história e a identidade cultural de São Paulo. A história de São Paulo está sendo apagada a cada placa roubada e estátua quebrada. Não podemos permitir que isso continue.


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